Publicado por: Hélio Bertolucci, Jr. | 29/10/2012

Santa Helena, um palacete que ruiu

O palacete, que levou o nome de Helena em homenagem a esposa do empresário que o edificou e “santa” aproveitando o lado da religiosidade da Praça da Sé, não conseguiu sobreviver e veio abaixo no início da década de 1970, para dar lugar a um novo e grandioso empreendimento formado pela Estação Sé do Metrô e sua nova praça.

É de se estranhar que, existindo  órgãos competentes para preservação do nosso patrimônio histórico e nossas memórias, o Palacete Santa Helena não tenha sido preservado. Sequer foi levado em consideração o que o prédio significou durante cinqüenta anos para a cidade, sua bela fachada, seus mármores, lustres, portas e tudo aquilo que de mais moderno havia na sua construção.

Naquela época, o edifício entrou num processo de decadência e suas salas de cinema só exibiam filmes fora do circuito comercial. Seus escritórios, na sua maioria desocupados, já não atraiam locatários, já que a cidade se desenvolvia para outros lados, especificamente no início da década de 1970, para os da Av. Paulista, nossa versão tupiniquim da 5th. Avenue, de Nova York.

Depois de algumas décadas, tendo sua história relegada ao esquecimento, em 2006, a Editora Senac de São Paulo, em parceria com a Imprensa Oficial, trouxe a história de um dos maiores e mais bonito prédio que existiu na cidade, lançando o livro Palacete Santa Helena. Um pioneiro da modernidade de São Paulo, organizado por Candido Malta Campos e José Geraldo Simões.

O trabalho de levantamento sobre o Palacete Santa Helena, apoiado pelo Fundo Mackpesquisas, contou ainda com um riquíssimo acervo fotográfico que documenta todo o processo construtivo do palacete, pertencente ao ex-governador Cláudio Lembo, cujo pai, Leonino Secondo Lembo, trabalhou na construtora Irmãos Assom, empreiteira responsável pela obra. O livro resultou ainda em pesquisas nos arquivos da Prefeitura, jornais e num conjunto de plantas do processo de avaliação do prédio pela própria Companhia do Metropolitano, que adquiriu o prédio e não o poupou da demolição.

O Palacete Santa Helena teve como proprietário o Sr. Manuel Joaquim de Albuquerque Lins, ex-presidente do Estado de São Paulo, e o nome “Santa Helena” foi uma homenagem a sua esposa Helena, nascida Souza Queiróz. Como nos demais empreendimentos da área de construção no Centro, os agentes imobiliários pertenciam às elites econômicas e políticas da época. Para se ter uma idéia, naquela época era proprietário dos palacetes Prates e do Edifício Dom Luiz  o Conde Luís de Toledo Lara, do Palacete Chavante o senador Peixoto Gomingio, dos prédios Martínico e Guatapará a família Prado e o Edifício Martinelli era do empresário e comendador Giuseppe Martinelli.

A construção do Palacete foi encomendada à família Asson. No início, a obra foi dirigida por Emmanuele (Manuel) Asson (1869-1922), que faleceu no primeiro ano da obra. Coube então aos seus filhos Adolfo Asson (1891-1925) e Luís Asson (1897-1971) finalizar a construção. Adolfo também faleceu quando as obras do Palacete Santa Helena ainda estavam em andamento, sendo concluídas por Luís Asson.

O arquiteto que originalmente idealizou o projeto foi Giacomo Corberi, também responsável pelas primeiras alteraçõe. Ele redesenhou a fachada com aumento do 4º andar e inserção do cine-teatro. Posteriormente, o Santa Helena teve alterações realizadas pelo arquiteto Giuseppe (José) Sachetti, referentes essencialmente ao desenho da fachada e aos três pavimentos adicionais.

Na época de sua construção, o Palacete Santa Helena, em relação às edificações baixas ao seu entorno, era considerado um arranha-céu com seus sete pavimentos, que no projeto original eram somente cinco. Exprimiu em grande parte as características dos novos e já existentes empreendimentos imobiliários presentes no centro da cidade. Tratava-se de um prédio originalmente destinado ao comércio e serviços, constituído basicamente por lojas no térreo, duas sobrelojas e pavimentos superiores contendo 276 salas de escritórios. O primeiro projeto previa um hotel, depois substituído por escritórios, e um cine-teatro. As lojas situadas no subsolo (no seu número de quatro) tinham suas próprias instalações sanitárias, arejadas por meio de poços de ventilação. Os elevadores foram de fabricação Graham, divulgados na época como fruto da mais avançada tecnologia.

O cine-teatro, que levava o mesmo nome do Palacete, ocupava os três primeiros pavimentos do bloco central, oferecendo aos seus espectadores platéia com frisas no térreo, uma área com camarote no mezanino e uma galeria no piso superior. No projeto original, estava previsto um salão de festas no subsolo (sob a plátéia) que acabou se transformando posteriormente em outra sala de cinema, o Cinemundi.

A estrutura do teatro, considerada uma sala de espetáculo de grande porte, tinha capacidade total próxima de 1816 assentos do Teatro Municipal, inaugurado em 1911. Tinha uma platéia com 27 metros de vão, com capacidade para 680 pessoas, frisas para 5 assentos eram, em projeto, 24; os camarotes para 5 assentos, eram 30. Segundo levantamento feito pela Companhia do Metropolitano por ocasião da avaliação do prédio na década de 70, foi revelado que sua construção final tinha 36 frisas e 42 camarotes e noticiário da época dá conta de que a lotação do teatro correspondia à ocupação de 1.500 lugares.

O que se observa é que o Teatro Santa Helena teve outro destino para  suas funções artísticas com o advento do cinematrógrafo, que chegou à cidade no início do século XX. O sucesso do cinema foi tanto que, em 1907, a cidade ganhou sua primeira sala de cinema para a exibição regular de filmes – o Bijou, na Rua Boa Vista. Após a primeira guerra mundial, surgia na cidade salas mais luxuosas, como o Cinema Central no Anhangabaú, o exótico Cine Santa Cecília e o Cine-teatro Santa Helena, consideradas boas opções.

A inclusão do cine-teatro representava um novo patamar para o empreendimento, que ganhava prestígio e se tornava, além de uma operação imobiliária, uma nova aposta na movimentação cultural, coincidindo exatamente com a Semana de Arte Moderna de 1922.

Com toda essa gama de opções dentro de um único edifício, o Santa Helena caracterizou-se como o primeiro edifício multifuncional da cidade de São Paulo. Destacava-se pelo luxo da decoração e pela modernidade das instalações, que exigiram cursos técnicos siginificativos para a época: elevadores, sistema de iluminação e telefonia, áreas internas, o teatro com máquinas para renovação do ar com capacidade para 160 metros cúbicos por minuto, revelando-se pioneiro em diversos aspectos.

A decoração interna e a pintura do teto do teatro ficaram sob a responsabilidade do artista italiano Adolfo Fonzaris, que pintou um imenso painel interno na abóbada conhecido como “a História e a Fama do carro de Apolo”. A pintura era representada por cavalos fogosos. No alto, musas e outras figuras simbólicas, grupo de cupidos e a Glória, que empunhava uma coroa de louros.

A fachada do Palacete, como as de mais alguns edifícios ecléticos, com influência art-decô, passou a configurar a Praça da Sé com ares de cidade européia, antes mesmo da construção das torres da Catedral.

Completado por volta de 1925, pouco antes da morte do seu proprietário, o edifício teve seu cine-teatro inaugurado no ano seguinte. Apresentava produções hollywoodianas, além de espetáculos cênicos e musicais. Destacou-se também por sediar apresentações mais populares e nomes da música caipira. Esse tom popular e caipira destoava da elaborada decoração e do luxo propostos no projeto.

Mal secava o cimento das obras, uma decadência prematura transformara a região ao longo das primeiras décadas do século XX, limítrofe a futura Zona Leste, região operária e fabril da cidade. A região da Sé viu-se tomada por uma população que não correspondia às pretensões elitistas e reformadoras do Centro.

Contribuiu também por essa transformação, outro local ali bem perto, o antigo Largo do Tesouro, onde ficavam os pontos finais dos bondes que vinham do Brás, da Penha e de outros subúrbios de baixa renda, em constante expansão. Tomada nos anos 1920 pelos automomóveis dos privilegiados, a Praça da Sé foi aproveitada como terminal de ônibus. Na gestão do prefeito Prestes Maia (1938-1945), surge ao seu lado a gigantesca Praça Clóvis Bevilacqua, em local antes destinado ao Paço Municipal, transformada no principal terminal de transporte coletivo da cidade, atendendo toda a região Leste.

As pessoas abastadas acabaram migrando cada vez mais para o lado oeste do Centro: Patriarca, Líbero Badaró, Anhangabaú, Barão de Itapetininga, um Centro Novo de maior prestígio que passou a reunir o comércio de luxo e os serviços mais qualificados a partir do segundo pós-guerra. Ao Centro Velho restou a decadência e seus prédios de salinhas apertadas, sem garagens e por receber a pedestrianização das vias, que acabaram se desvalorizando rapidamente.

O Palacete Santa Helena viu surgir, no lugar de prestígio social visado de início, uma nova vocação – a de pólo de artistas e movimentos operários. Contendo uma grande quantidade de pequenas salas, que eram alugadas a preços módicos, o edifício começou a atrair profissionais de menor poder aquisitivo e organizações sindicais e de esquerda, que dependiam do esforço voluntário e das pequenas contribuições dos seus filiados.

Abrigou o Sindicato dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo de 1934 até 1954, também o Sindicato dos Empregados no Comércio e várias outras organizações de esquerda, muitas delas vinculadas ao Partido Comunista, como o Centro Juvenilista, ligado à Aliança Nacional Libertadora (ANL) e a Juventude Popular, Estudantil e Proletária da qual fizeram parte o escritor Jorge Amado e o ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Em 1935,  quando a ANL preparava o Congresso Juvenil Comunista, o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), invadiu o edifício Santa Helena e prendeu várias pessoas, entre elas a jovem militante judia de origem romena, Genny Gleizer, de apenas 16 anos. Esta passagem ficou conhecida naquela época como “A Batalha da Sé”.

Com um grande número de operários e comunistas circulando por seus andares, as atuações no prédio não se limitaram à militância política e sindical. Alguns se dedicaram às artes, com destaque para um grupo de pintores (vários deles originalmente ligados à construção civil) que formou o Grupo Santa Helena: Aldo Bonadei (1906-1974), Alfredo Rullo Rizzotti (1909-1972), Alfredo Volpi (1896-1988), Clóvis Graciano (1907-1988), Fulvio Pennacchi (1905-1992), Humberto Rosa (1908-1948), Manoel Martins (1911-1979), Mário Zanini (1907-1971) e Rebolo Gonsales (1902-1980). O grupo começou a se formar a partir de 1934, quando os artistas foram chegando ao Palacete Santa Helena, n° 43 (posteriormente n° 247). Na visão de Rebolo, o grupo não começou como um movimento, mas foi transformado pelos intelectuais.

Toda essa vanguarda durou pouco. Após alguns anos, a maioria dos artistas deixou o prédio, assim como os sindicatos, que ganharam sedes maiores. Dividido entre os herdeiros de Manuel Joaquim de Albuquerque Lins e Helena de Sousa Queiróz, o Santa Helena havia perdido suas atividades como empreendimento rentista. No auge da crise dos aluguéis e da Lei do Inquilinato de 1942, foi vendido ao IAPI (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários) em 1944.

Suas salas de cinema passaram a exibir produções baratas atraindo pessoas de baixo poder aquisitivo. Os conjuntos de escritórios eram alugados para os ocupantes mais diversos.  Um deles ofereceu um curso de madureza – o Educabrás – que ocupou parte do edifício nos anos 60, até a sua demolição. Muitas salas não encontraram sequer inquilinos e o prédio foi se esvaziando.

Esse processo foi se agravando até o ano de 1971, quando foi comprado pela Companhia do Metropolitano e demolido, junto com os demais edifícios da mesma quadra, com o propósito de ampliar a Praça da Sé, anexando-lhe a Praça Clóvis Bevilacqua, e possibilitar a construção das linhas Norte-Sul e Leste-Oeste do Metrô.

O Palacete Santa Helena começa a ser demolido na tarde do dia 23 de outubro de 1971 e, depois de 117 dias de marretadas, some do cenário da cidade de São Paulo.


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